Fundamentos e natureza da vocação sacerdotal - parte 1
Escrito por Cardeal Piacenza
A Pastores dabo vobis, no n. 42, vê a raiz da vocação sacerdotal no diálogo entre Jesus e Pedro (cf. Jo 21): “Formar-se para o sacerdócio significa habituar-se a dar uma resposta pessoal à questão fundamental de Cristo: ‘Tu me amas?’ A resposta, para o futuro sacerdote, não pode ser senão o dom total de sua própria vida”.
Considero uma observação teológico-espiritual como essa impregnada de importantes conseqüências, que iremos investigar. Antes, todavia, gostaria de fazer uma premissa, de caráter metodológico e semântico, a respeito do uso do termo “vocação”. Minha impressão é de que, hoje, esse termo seja usado com demasiada freqüência para indicar não tanto um chamado específico do Senhor quanto as escolhas de vida que os homens fazem autonomamente; a conseqüência disso é que qualquer profissão, trabalho, condição ou estado de vida passam a ser encarados como vocação!
Parafraseando uma afirmação teológica do cardeal Cottier, segundo a qual, “se tudo é graça, nada é graça”, poderíamos dizer: “Se tudo é vocação, nada é vocação!”
Apresentar tudo como “vocação” sem as necessárias distinções, traz consigo o risco de um grave achatamento, de um horizontalismo artificial e de uma “ordinarização” da vocação, que seria, assim, o resultado de uma simples escolha humana.
Se é verdade que é lícito, ou melhor, necessário falar, por exemplo, de “vocação universal à santidade”, ou de “vocação à vida”, devemos reconhecer também que essas linguagens pertencem ao esquema teológico-moral que tem P. Haring como uma de suas maiores referências, e que interpretou a relação de salvação segundo o dístico: “Deus chama – o homem responde”. Não podemos deixar de reconhecer os méritos desse modo de encarar a questão, mas devemos avaliar também seus limites. De fato, essa interpretação, se não for adequadamente compreendida, pode levar a não considerar devidamente a dramática realidade do pecado das origens, “pecando”, por sua vez, por um certo otimismo e irenismo antropológico.
Pessoalmente, estou convencido de que possamos, e devamos, voltar a fazer uma distinção bem clara entre “vocação natural” e “vocação sobrenatural”, reservando só a esta última, em sentido estrito, o significado autêntico de vocação. Nesse sentido, por exemplo, o matrimônio é, e continua a ser, uma belíssima realidade à qual todo homem, sadiamente orientado, é naturalmente chamado; portanto, propriamente, não haveria sentido em falar de “vocação” matrimonial, a não ser esclarecendo que se trata, mais que de uma “vocação”, de uma “inclinação natural”.
O matrimônio cristão sacramental é que poderá, esse sim, ser descrito com “cores vocacionais”, já que nele o instituto natural foi elevado, por Nosso Senhor, à dignidade de sacramento (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1601). Mas, certamente, nem todos os movimentos da alma humana podem ser de origem sobrenatural: podemos imaginar muito bem o que aconteceria se qualquer “inclinação” dos homens fosse canonizada em presumível “vocação” divina. Fica claro, portanto, como esse modo de encarar a questão não se sustenta, quando confrontado com a realidade e, sobretudo, ao passar pelo crivo do drama universal do pecado, pelo qual nunca é lícito atribuir a Deus nenhuma responsabilidade.
Portanto, quando falamos de “vocação”, é necessário recuperar o autêntico significado do termo, certamente reconhecendo que o próprio chamado a nos tornarmos cristãos é uma autêntica vocação sobrenatural, mas reservando o termo às vocações que, classicamente, sempre foram consideradas como tal (as vocações sacerdotais e à vida consagrada).
Se é verdade que não nascemos cristãos – a não ser, em certo sentido, culturalmente -, mas cristãos nos tornamos, mediante o acontecimento do encontro com Cristo, que dá à vida um novo horizonte (cf. Deus caritas est, 1), é igualmente verdade, e uma verdade irrenunciável, que a vocação sacerdotal não é uma escolha humana, mas um chamado divino. É o ingresso sobrenatural de Deus na existência humana! Um Deus que chama o homem a segui-Lo radicalmente, totalmente, renunciando até mesmo a tudo o que é humanamente bom e lícito, para ser, para Ele e para o mundo, a “terra prometida” à tribo de Levi, a qual, para o culto ao Senhor, não possuía terra neste mundo. Lembremos o salmo: “Ó Senhor, sois minha herança e minha taça” (Sl 16,5).
Essa tentativa de recuperação semântica do termo “vocação” tem enormes conseqüências de caráter metodológico, sobretudo no que diz respeito ao discernimento vocacional: se a vocação é um evento sobrenatural, o discernimento deve ser feito mediante o emprego de métodos sobrenaturais. Ao contrário, discernir a vocação, por exemplo, utilizando apenas técnicas psicológicas seria uma violência ao objeto, que impõe, ex natura sui, o método do conhecimento.
A psicologia é um método natural, portanto inadequado para discernir a vocação sobrenatural. As ciências humanas podem ser sumamente úteis para “trabalhar sobre o humano”, que deve suportar a graça sobrenatural da vocação, mas não podem nunca se tornar critério último de discernimento vocacional.
É necessário, pois, levar em conta que o Senhor doa também, àqueles que chama, a graça de um extraordinário “florescimento humano”: a humanidade, tocada pela graça da vocação sobrenatural ao sacerdócio, e, de modo mais geral, à virgindade para o Reino dos Céus, floresce como nunca poderíamos pensar; e, se abandona o caminho da vocação, como confirma a experiência da Congregação, murcha repentinamente.
A vocação sacerdotal é, portanto, um evento sobrenatural da Graça, uma intervenção livre e soberana do Senhor, que “chamou os que ele quis. E foram até ele. Então Jesus designou Doze, para que ficassem com ele e para enviá-los a pregar” (Mc 3,13; cf. Pastores dabo vobis, 65). A esse evento sobrenatural responde a liberdade humana, aderindo à divina vontade e conformando-se progressivamente.
Voltando, então, ao incipit desta contribuição, ao n. 42 da Pastores dabo vobis, poderíamos dizer que, na base da vocação sacerdotal, está a relação de amor intenso, apaixonado, ardente, exclusivo e totalizante entre Cristo Senhor e aquele que é chamado. Sem essa experiência “subversiva”, que muda, e em certo sentido desconcerta, a vida, não se dá autêntica vocação, verdadeira compreensão da poderosa ação de Deus no itinerário histórico de cada um.
Esse amor, que obviamente tem origens divinas, envolve realmente o coração humano, a inteligência, a liberdade, a vontade e a afetividade da pessoa que é chamada, uma vez que, graças justamente à profunda unidade do homem, todas as dimensões do eu são como que “arrebatadas” e profundamente mudadas pelo chamado do Senhor.
Esse amor pelo Senhor, único real fundamento da Vocação, se documenta num aspecto, hoje infelizmente não suficientemente sublinhado, mas absolutamente central, da vida do sacerdote, e antes do seminarista: o amor à divina Presença de Cristo Ressuscitado na Eucaristia. Acredito que a adoração eucarística se deveria tornar uma prática cotidiana e prolongada, a ponto de marcar a formação do sacerdote, tanto inicial quanto permanente. Quantas e quantas coisas amadurecem sob o Sol eucarístico! E, se bronzeamos a pele ficando expostos aos raios do sol astronômico, que processo de crescimento, de “cristificação” não ocorrerá, se ficarmos sob os raios do Sol eucarístico? A vocação só nasce, cresce, se desenvolve, se mantém fiel e fecunda na intensa relação com Cristo.
Mediante a Adoração da Presença real, a inteligência deve compreender que é Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo, a única verdade, a verdade total, o único insubstituível Salvador! Como seria possível, diferentemente, aculturar o futuro sacerdote de maneira cristã? De onde poderia se alimentar a missionariedade, que deve urgir como um rio em cheia?
Certamente, a promoção dos valores humanos e um sentimento genérico de solidariedade não são razões suficientes para que alguém dê a vida, no martírio cotidiano da virgindade, da obediência e do serviço, e – quando para isso somos chamados – no martírio do testemunho até a efusão do sangue. Não damos a vida por uma idéia ou por um “valor”! Damos a vida por uma Pessoa! Uma Pessoa conhecida, amada, e pela qual somos amados: essa é a relação com Cristo, com quem se relacionam também a inteligência e a verdadeira formação intelectual.
Mediante a Adoração da Presença real, o coração deve sentir a exclusividade do amor. Um amor que incendeia a tudo em nós e ao nosso redor! A verdadeira raiz do sagrado celibato está nesse amor. Longe de ser uma simples norma disciplinar, como alguns gostariam de dar a entender, o sagrado celibato, ou melhor, a virgindade para o Reino dos Céus, é a tradução existencial da Apostolica vivendi forma, que, à imitação do próprio Jesus, põe Deus em primeiro e único lugar, também entre os afetos. A “lei” é apenas uma conseqüência óbvia disso.
Mediante a Adoração da Presença real compreendemos também o sentido profundo da disciplina eclesiástica, ou seja, de sermos discípulos de Cristo na Igreja. A tão vituperada disciplina eclesiástica nada mais é senão discipulado! Devemos recuperar urgentemente suas raízes, feitas de amor a Cristo e às almas, em razão d’Ele.
A Adoração da Presença real é a verdadeira, e no fundo única, “escola da alegria”; em Cristo até mesmo o sacrifício é alegria, pois é participação do grande desígnio da salvação, algo desejado pelo Pai para a salvação dos homens.
Nessa ótica, a penitência recupera seu valor sobrenatural, tornando-se uma verdadeira virtude, na tradição nunca banal, cheia de amor e ternura pelo Senhor e feita de atenções contínuas a Ele, da permanente memoria Crucis que caracteriza a vida dos santos e dos místicos, chegando mesmo à justa recuperação dos “fioretti”, ou seja, dos constantes gestos de memória e oferta, que tornam o dia totalmente preenchido por Cristo e por sua Presença. Para isso é preciso, porém, humildade, simplicidade e infância espiritual.
Só nessa ótica é possível compreender na própria carne, também na formação no seminário e na formação permanente do sacerdote, o que é pertencer ao Corpo Místico e agir in Persona Christi, participando, até com os próprios sofrimentos, do mistério da substituição vicária, que o Sacerdote é chamado a viver em si mesmo cotidianamente.
Um sacerdote que tenha essa consciência da Presença real de Cristo será um homem de Deus, casto, obediente, desapegado de toda a sua pessoa, portanto livre!
A obediência, na Igreja, é certamente um conselho evangélico, uma virtude moral, mas é, sobretudo, uma representação permanente do próprio Cristo, “obediente até a morte, e morte de cruz” (cf. Fl 2,8), representação daquele amor que é redenção que escorre da árvore da Cruz, que é obediência, obediência que é amor, puro amor!
Só nessas condições é possível educar ao verdadeiro sentido da Igreja, ao amor à Santa Mãe que a todos gerou e gera, na fé e no santo sacerdócio católico.
Por tempo demais, e em lugares demais, deixamos que o mundo educasse os seminaristas, abandonados à osmose com o clima disseminado numa sociedade relativista, hedonista, narcisista e, definitivamente, anticatólica!
Dessa forma, permitimos que o mundo condicionasse o pensamento dos seminaristas, sua maneira de falar, sua maneira de criticar e de julgar a Mãe, ou seja, a Igreja, sua rendição a categorias de pensamento histórico-políticas, impostas pela hermenêutica da “descontinuidade”, dentro do único sujeito eclesial. Todo esse condicionamento, enfim, chegou até mesmo ao modo de se vestir, de cantar, e a uma certa “sexualização” irresponsável, mediante um uso imaturo e superficial dos gestos, emprestando todos esses aspectos do mundo! Bem sabemos que espírito do mundo e Espírito de Deus estão em oposição. Como sabemos também que o lugar teológico não é o mundo, mas, sim, a Igreja, presença de Cristo no mundo.
Em que é que alguns seminaristas diferem de seus coetâneos secularizados?
O que foi criado não é uma heresia, que faria o Corpo eclesial reagir prontamente, mas um clima geral, uma espécie de névoa que a tudo envolve, tornando-nos incapazes de ver e distinguir com clareza entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a virtude e o vício.
Para compreender tudo isso, poderíamos encontrar uma analogia com o que, no nível filosófico, e depois de maneira generalizada, ocorreu com o termo “moderno”: na linguagem comum, uma realidade é boa se é moderna. Não importa se é verdadeira ou falsa, se promove realmente o homem ou lhe causa danos; nada nos perguntamos sobre isso. É suficiente que seja “moderna” para que encontre simpatia e até acolhida nas mentes e nos corações, e, portanto, nos costumes. O mesmo se dá em alguns ambientes eclesiais; basta usar locuções já famosas como “depois do Concílio” ou “segundo o espírito do Concílio” para que ninguém ouse nem mesmo ir verificar se realmente aquela nobre Assembléia de Padres fez determinadas afirmações.
Basta pensarmos, também, em algumas “palavras-chave” com as quais, às vezes, ótimas vocações são humilhadas, e se perdem: “é rígido demais”, “ligado demais à forma”, “não é aberto à diversidade”, “está convicto demais”, “não tem dúvidas”, “não elaborou criticamente a fé”, “rompe a comunhão”, etc.
Precisamos, hoje, escapar a esse equívoco e dizer “pão, pão, queijo, queijo”, pois, enquanto não houver clareza sobre as moléstias, nunca poderemos identificar a cura, e tampouco poderemos construir uma maneira autenticamente católica e realmente moderna de formar o futuro clero do mundo.
Cardeal Piacenza - Jornadas de Formação Sacerdotal, a quinze anos da Pastores dabo vobis, Pontifício Colégio Espanhol de São José, Roma, 7 de novembro de 2008