A vida espiritual
“A oração, o diálogo com Deus, é um bem incomparável, porque nos põe em comunhão íntima com Deus. Assim como os nossos olhos são iluminados quando recebem a luz, a alma que se eleva para Deus é iluminada por sua luz inefável. Falo da oração que não é só uma atitude exterior, mas que provém do coração e não se limita a ocasiões ou horas determinadas, prolongando-se dia e noite, sem interrupção”.
Pseudo-Crisólogo, Hom.6 de precatione
Uma das imagens mais frequente que toma a imaginação quando escutamos o termo “vida espiritual” é a barroca pintura de vigílias e procissões, projetada com uma luz tão intensa que parece ofuscar qualquer traço do cotidiano que se encerre na moldura. Um verdadeiro contraste entre oração e vida semelhante àquele entre as luzes e as trevas é o que se depreende de tal quadro. Não que todos os que nos comprometemos com práticas devocionais vivamos esta cisão entre o espiritual e o terreno; o fato é que há certa confusão em torno da questão da oração e da vida espiritual.
Não são poucos aqueles que se dizem religiosos por repetirem certas orações, encarando-as como uma espécie de seguro de previdência. Dia após dia, no simples cumprimento de alguns ritos, o fiel se vê justificado diante de Deus e livre da danação sem fim. A oração, assim compreendida, mais se refere à esfera da fantasia mágica que a qualquer outra coisa. Isso se deve, de certa forma, a uma crise profunda da compreensão do mundo, da religião e de Deus. Supõe-se uma dicotomia intransponível entre a esfera do espiritual e a do terreno, como se Deus tivesse criado o homem de corpo e alma para que ele vivesse com um e rezasse com outro. Esse não é, porém, o ensinamento da Igreja. O homem foi criado para conhecer, servir e amar a Deus nesta vida e merecer, assim, a vida com o próprio Deus para sempre no céu[1]; em outras palavras, a vida do homem sobre a terra tem um propósito que não se esvai na certeza iminente e angustiante de sua morte, visto ter ele se encontrado com o Amor do Criador que, vindo ao seu encontro, superou esse certo limite da contingência em sua Ressurreição. Ora, se essa é a novidade que o Cristianismo nos oferece, e se isso significa que viver a vida nova é se configurar a esse propósito transcendente do amor que vence a morte, então se vê que o acontecimento escatológico é a verdadeira vida que devemos viver e esperar. A separação entre o espiritual e o terreno é uma caricatura dessa complementaridade e plenitude que nos dão o verdadeiro sentido de nossa existência. Só dessa forma compreendemos nossa vida em todos os seus aspectos, inclusive na dimensão da vida de oração, ou vida espiritual, como se queira dizer.
Talvez não restassem tantas dúvidas e contradições se, ao falarmos de vida espiritual, pretendêssemos falar a respeito de nossas orações. Mas, afinal, o que é oração? Em uma rápida tentativa de resposta, poderíamos dizer que ela é a elevação da mente e dos afetos ao desígnio de amor de nosso Deus; é o momento que nos colocamos em Sua presença e buscamos adequar nossa vontade à Sua; é quando reconhecemos a nossa pequenez e insuficiência e entregamos toda a nossa vida, preocupações e alegrias, angústias e esperanças, à sua misericordiosa proteção. Bem, tais asserções ficariam mais esclarecidas se nos amparássemos em algumas imagens bíblicas para refletir o tema.
A primeira das passagens que muito nos poderia ajudar na reflexão está inserida no momento mais dramático de toda a Sagrada Escritura. Jesus está na cruz, pregado e flagelado pelo desprezo e ingratidão de toda uma história de homens que Ele assume em sua Paixão. Completamente abandonado, não fosse a ternura de sua mãe e a companhia de algumas poucas outras mulheres. Mas, ainda assim, este Deus, que não desistiu do homem, apesar de todos os pesares que lhe poderiam ser imputados, continua convidando a cada um para que se acerque de seu mistério de amor e receba a graça de Sua entrega. Do alto da cruz ele exclama: “Tenho sede” (Jo 19,28), um grito que vai muito além de uma necessidade física.
De certa maneira, nós podemos ver, nessa súplica de Jesus, a essência de sua própria Encarnação: o Verbo se fez carne e habitou entre nós para que a humanidade pudesse, enfim, habitar novamente com Deus. Ao entender, assim, esse plano de Salvação, nós também compreendemos o propósito mais íntimo de nossa natureza: a comunhão com Deus. O Catecismo da Igreja, em consonância com essa ideia, quando inicia sua última seção, que versa, justamente, sobre o tema da oração, utiliza-se dessa cena do evangelho para dizer ser a oração “o encontro entre a sede de Deus e a nossa. Deus tem sede de que nós tenhamos sede dele” [2]. E esta é, de fato, a essência da oração. Nestes momentos em que nos colocamos na presença de Deus e invocamos o seu nome, nós buscamos esse anseio profundo de nossa alma, que sempre clama por algo a mais daquilo que encontramos em nossa vida. Por melhores que sejam as condições e os acontecimentos de sua vida, não há só um homem que não aspire à totalidade plena e imperecível, cujo reflexo ele vê nas realidades que lhe circundam. O homem tem sede desse Deus que também quis ter sede dele. A oração é o encontro em que começamos a saciar nossa sede. Aqui, no entanto, um segundo trecho da Sagrada Escritura nos seria de bom proveito para continuar refletindo sobre o significado da oração.
“Uma só coisa é necessária,” diz Jesus, que continua: “e Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada” (Lc 10,42). Nessa afirmação, mais uma vez, a essência da vida humana nos é esclarecida: estar junto de Deus e participar de sua vida bem-aventurada. Ora, se a oração é estar diante de Deus, e se o propósito de nossa vida não é outro senão esse, então entendemos que a oração é a condição da plenitude e da integralidade de nossa vida: todas as ações humanas convergem nesse ato e têm o seu sentido absoluto nele. Sem a oração, sem a consideração de tal proximidade de Deus com os seus, nós não viveríamos plenamente as possibilidades que a vida nos oferece, sem saber que tudo caminha para sua realização plena em Deus, tudo seria nada mais que uma sufocante sucessão de fantasmas.
Bem, alguém, muito sincero e comprometido com a causa da história, a esta altura da exposição, poderia se levantar e objetar que tal concepção de mundo, de religião e de Deus aliena o homem de seus compromissos, torna-o apático às circunstâncias que lhe tocam, além de descomprometido com o meio em que vive; a própria vida, por fim, concluiria o queixoso, estaria desprovida de sua natural beleza e relevância. Ora, alguma verdade haveria nessa crítica se a oração fosse compreendida conforme o modelo mágico mencionado a pouco. O que se viu, entretanto, foi que aquela nada mais é que uma caricatura da verdadeira vida espiritual. A verdadeira vida espiritual é, simplesmente, um dos modos imprescindíveis para se viver a vida nova, a vida em Cristo, que a Redenção nos propõe. Para esclarecer, todavia, a possível objeção, seria interessante evocar o exemplo de Moisés a esse respeito.
O capítulo 33 do livro de êxodo relata como este servo do Altíssimo gerenciava seus afazeres. Jamais ele poderia se olvidar das obrigações terrenas, visto ser ele o líder de todo um povo. No entanto, antes de qualquer decisão, ele se retirava do acampamento e se colocava na Presença do Senhor, para escutar dEle a melhor maneira de proceder (cf. Ex 33, 7-12). Comenta este trecho São Gregório Magno: “Dentro [da tenda] arrebatado até as alturas mediante a contemplação, fora [da tenda] deixa-se encalçar pelo peso dos que sofrem” [3]. Essa precisa cena responde às dúvidas sobre o suposto descompromisso histórico da oração. Somente quem reza é que poderá, de fato, contribuir para a construção da história, porque buscará cumprir a vontade de Deus e não saciar a sua avidez e ganância que é fruto somente de desunião e destruição. Além do mais, há um grande risco, neste ponto, que merece ser considerado com atenção. Muitas vezes acreditamos e professamos sermos o alicerce do universo e que, sem nós e a nossa ação, o mundo ruiria. Ora, essa é a convicção de muitos que se foram e nada mais erigiram de perpétuo que não as lápides lúgubres do cemitério. É importante que compreendamos ser Deus o único que governa o mundo, não nós[4]. Nós só poderemos contribuir em Sua criação quando nos colocarmos afirmativamente na lógica de Sua Redenção de renunciarmos a nós mesmos. Sem isso, por mais que façamos, certamente estaremos contribuindo não para edificar, mas para destruiu a obra de Deus.
Essas três citações bíblicas nos deveriam ter ajudado a compreender a essência da oração, que não pode jamais estar separada da essência do mundo, de nossa vida e, sobretudo, do próprio Deus. Nas nossas devoções, em nossa vida espiritual, estamos diante de Deus de um modo distinto de como o estaremos após as nossas orações. Isso não pode jamais significar que não o estaremos também nas demais circunstâncias de nossos dias; muito pelo contrário, não há qualquer descontinuidade entre estes dois momentos, mas, simplesmente, a possibilidade única de integração e plenitude. Somente com a oração, com a presença de Deus em seu seio, a vida se torna plena.
De tudo o que se falou, um resumo talvez se encontre na história daquele pai que expôs, em seu escritório, um prosaico desenho que seu filho lhe fez. O desenho é simplório e desprovido de qualquer valor artístico, em comparação com o antigo Monet que lhe adornava o ambiente. Mas nada importava para aquele homem. Quando olhava para aquela pequena figura que caminhava unida pelas mãos com a figura maior, o pai se recordava do grato e amoroso esforço de seu filho por lhe agradar. Não eram necessários feitos épicos para contentar o coração daquele homem: um simples desenho, a busca de, no mais simples ato, agradar ao pai, o sincero esforço ainda que falho por imitar o pai em sua vida, tudo isso já bastava para que aquele homem transbordasse em alegria e derramasse em seu filho as mais sinceras e copiosas manifestações de seu amor. Esta é a nossa oração: um amor que se traduz em balbucios contínuos e que tem um valor inestimável aos olhos de Deus, por mais insignificantes que sejam, porque são a confissão leal de se buscar a Sua vontade. Essa é a vida espiritual, a vida nova, plena e verdadeira que Jesus possibilitou.
[1] Cf. Catecismo da Igreja Católica, §1.
[2] Ibid. § 2560.
[3] II, 5: SCh 381, 198.
[4] Cf. Bento XVI. “Deus Caritas est”, §34.
Texto: Seminarista Murilo Daniel Botelho Gomes - 2 ano de Teologia
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